terça-feira, 6 de março de 2012

O STF, a descriminalização da maconha e os Tratados Internacionais sobre Drogas – fendas no muro proibicionista


Por Sergio Vidal*, no sítio cannacerrado.org

Toda vez que alguém fala em legalizar a maconha sempre surge um proibicionista para afirmar: “Mas se algum país legalizar a maconha estará descumprindo os tratados internacionais sobre drogas da ONU e sofrerá retaliações”. No momento em que o Supremo Tribunal Federal se prepara para decidir sobre a constitucionalidade da criminalização do porte de drogas para consumo pessoal, é mais que hora de vermos se isso é realmente verdade.

Tudo bem, o Brasil assinou os tais Tratados Internacionais, mas a Espanha, Holanda, Argentina, E.U.A., Alemanha e demais países onde estão ocorrendo experiências de regulamentação mais tolerantes com relação aos usuários também são signatários dos mesmos tratados. E, afinal, o que esses documentos falam de fato sobre o que cada país deve fazer com relação à maconha?

No Simpósio Cannabis sativa L. e Substâncias Canabinóides em Medicina, promovido pela Unifesp em parceria com a SENAD em 2004, a representante da Agência da ONU para as Drogas e Crimes, Valerie Lebaux, foi clara ao manifestar qual era a interpretação oficial da agência sobre o tema. Sua fala foi totalmente transcrita e publicada num livro com todo o conteúdo do Simpósio. A fala de Valerie Lebaux pode ser lida AQUI, e o livro completo pode ser baixado AQUI.

A análise de Lebaux nos revela que as Convenções podem ser alvo de diferentes interpretações. Uma delas é de que os países signatários, incluindo o Brasil, não são obrigados a criminalizar as condutas relacionadas com o uso pessoal de maconha e outras drogas. Isso porque ao decidir estabelecer penalidades ou criminalizar tais condutas os países precisam obedecer a “Cláusula de Salvaguarda”. Essa cláusula dá margem para que cada país adeque as Convenções de acordo com seus próprios Princípios Constitucionais e Ordenamentos Jurídicos.

Lebaux cita como exemplos desses princípios constitucionais algumas decisões judiciais que culminaram em mudanças na forma como a criminalização passou a ser vista em cada Nação:

Princípio da liberdade individual, incluindo a liberdade de escolher um caminho de vida e colocar a própria saúde um perigo. Tribunal Constitucional, Bolívia, 1994. Decisão: lei que estabelece o transporte, consumo e manutenção de drogas para uso pessoal como crimes foi considerada inconstitucional, porque a Constituição garante o direito ao livre desenvolvimento da personalidade.

Itália, 1993. Decisão: as sanções penais são a forma mais extrema de proteção dos interesses jurídicos e deve ser utilizado com moderação.

Princípio da proporcionalidade entre a gravidade da infracção e o rigor das penalidades: Tribunal Constitucional alemão, 1994.

Com esses exemplos fica claro como existem diferentes formas de adaptar o que foi acordado durante os Tratados à realidade cultural, social, economica e, principalmente, constitucional do nosso país. A atual Lei de drogas e a forma como vem sendo aplicada têm gerado consequências graves para a sociedade brasileira. Já é da hora de dedicar tempo a uma discussão séria e ao trabalho de construir uma nova realidade sobre as drogas no país.

A decisão do STF sobre o porte de drogas para uso pessoal, seja ela qual for, não irá causar uma transformação imediata na forma como tratamos a questão. Se o STF decidir que a lei não pode punir pessoas envolvidas em condutas relacionadas com o consumo, haverá a descriminalização com despenalização. Ou seja, ser usuário não será crime, nem será passível a qualquer tipo de pena. Mas não haverá uma legalização ou regulamentação. Não serão criadas as regras de como pode ou não usar maconha. Muito menos de como pode ou não cultivá-la. Cabe aos atores envolvidos nesse tema construir as propostas de como devem ser as regras para cultivar, colher, distribuir e consumir maconha. As experiências de “descriminalização” e “legalização” que ocorrem hoje em dia em alguns países, como os citados mais acima, não estão sendo processos rápidos, muito menos fáceis.

O momento é de construirmos a proposta que consideramos mais adequada para o Brasil e unir forças para que ela seja colocada em prática. Existem ainda muitas divergências dentro do próprio movimento pela legalização da maconha no Brasil, mas é hora de sentarmos e construirmos algo com base no consenso mínimo, adequado à nossa realidade, dentro das fendas já existentes nas Convenções Internacionais e na própria lei de drogas atual. É claro que não devemos esquecer a tarefa de denunciar os equívocos das Convenções e da Lei, de propor mudanças, de lutar para que sua aplicação seja feita respeitando a cidadania, a diversidade cultural e os direitos humanos.

Em colunas futuras, abordarei algumas experiências internacionais das quais podemos tirar muitas informações positivas. Esse é um tema bastante complexo, mas espero estar contribuindo para que seja melhor entendido.

Um abraço e até semana que vem!

* Sergio Vidal é antropólogo e autor do livro Cannabis Medicinal – Introdução ao Cultivo Indoor (http://cultivomedicinal.com.br) e de diversos artigos sobre drogas, seus usos e usuários. É conselheiro do Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas – CONAD. Atualmente também é pesquisador do Núcleo de Estudos sobre Substâncias Psicoativas -NEIP (http://neip.info). Escreve coluna semanalmente, no site do Cannacerrado, em que aborda temas de relevância social e política. Envie sugestão de tema para as próximas colunas: sergiociso@gmail.com

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