terça-feira, 5 de julho de 2011

Bolsonaro ataca mais uma vez

Por Paulo Moreira Leite Geral, postado na revista Época

Confesso que fiquei chocado quando o cineasta Lars von Triers disse no Festival de Cannes que era capaz de “entender Hitler.” Embora tenha esclarecido que fazia apenas uma ironia, e tenha se desculpado logo em seguida, von Triers foi forçado a fazer as malas e deixar o evento antes do final.

Fiquei chocado porque considero von Triers um dos genios do cinema mundial. Seus filmes marcam nossa sensibilidade e representam um esforço honesto e raro de alcançar as tragédias e dores de nosso tempo. Sua obra não faz concessões a estética de Hollywood, ao poder do dinheiro e ao poder em geral. Faz justiça a palavra trangressão.

Gostaria muito que ele prosseguisse na construção de uma obra, riquíssima e de alto valor humanitário — apesar de sua declaração lamentável. Espero que se recupere.

Ao admitir uma empatia com Adolf Hitler, von Triers deixou em aberta a possibilidade de que pudesse comungar com idéias anti-semitas. É condenável.

Mas ele não pode ser acusado de manter um pensamento racista articulado e organizado, como acontece, por exemplo, com o estilista John Galeano, que já fez repetidos pronunciamentos preconceituosos contra judeus e de simpatia a Adolf Hitler.

Por que estou fazendo a comparação? Porque quero discutir outro preconceito – contra gays.

Considero que as declarações do capitão e deputado federal Jair Bolsonaro a ÉPOCA formam um conjunto escandaloso.

Bolsonaro admite, sim, que tem preconceito contra gays. Não é uma declaração solta, perdida. uma afirmação já repetida, articulada, no melhor estilo John Galeano. Em função de uma frase dita num ambiente fechado, que não pretendia que fosse divulgada, Galeano foi parar na polícia e está prestando contas à Justiça inglesa.

A declaração de Bolsonaro é pública. Nada lhe acontecerá porque se considera que, como parlamentar, não pode ser ameaçado em seu direito de emitir opiniões. Isso lhe dá o direito de fazer a propaganda de seu preconceito.

Foi por essa visão que dias atrás ele escapou de uma condenação quando o Congresso examinou uma declaração semelhante – a única dúvida, desta vez, é saber se ele fora racista, homofobico, ou os dois. Convencido que o prejuízo eleitoral de ser acusadado de racismo poderia ser imenso num país onde mais de 50% da população se declara negra, ele admite que tem preconceito “apenas” contra gays.

Sou inteiramente a favor da liberdade de expressão — e estranho que os parlamentares tenham uma garantia maior. Acho que todas as pessoas devem ter o direito de dizer o que sentem e pensam. A liberdade não pode ser um privilégio. Quero o mesmo direito de opinião para um deputado e para um cidadão comum. Estou errado? É razoável aceitar que um parlamentar tenha mais liberdade de opinião do que eu e você? Em nome de que?

Essa garantia suplementar talvez fizesse sentido nos tempos do regime militar, quando a população vivia sob censura e o parlamentar poderia perder o mandato em função de sua opinião. Bem ou mal, era uma forma de resistencia. E agora?

No caso específico de Bolsonaro, a ironia é mais gritante. Ao longo de sua carreira, e em suas atitudes cotidianas, ele demonstra um empenho regular e permanente de questionar a democratização do país e defender a ditadura militar. Você pode encontrar vários defeitos no Congresso brasileiro. Mas irá encontrar poucos políticos que demonstraram um empenho anti-democrático tão firme e descarado.

Um dos argumentos empregados na defesa de Bolsonaro é que não há lei específica contra a homofobia, o que tornaria razoável colocar em duvida a possibilidade de punição.

Concordo que uma legislação clara contra a homofobia pode ser útil, para reforçar garantias oferecidas pela democracia contra uma parcela da socieade que é alvo frequente de ataques e injurias. Mas vamos combinar que o Brasil não descobriu agora que todos são iguais perante a lei, e tem direito a proteção de sua dignidade. Isso está na Constituição, aprovada em 1988.

Toda pessoa que já ouviu um palavrão sabe quando se trata de um puro xingamento — e quando é um ataque, uma forma de atingir sua imagem e seus direitos.

Ao menos em teoria, não deveria ser preciso de leis específicas para condenar ataques a imigrantes nordestinos, a pessoas obesas ou mesmo com necessidades especiais.

Pergunto se a reação a Bolsonaro seria a mesma se, vem vez de gays, ele tivesse se referido a outros grupos sociais e comunidades específicas. Considerando o cotidiano de violencias que atingem os gays, seu acho esquisito que os juízes que proibiram as passeatas da maconha não tenham considerado que Bolsonaro faz apologia a um crime. O debate seria muito rico, vamos combinar.

Quem se recorda da mobilização produzida como resposta a um ataque racista do autodeclarado humorista Daniel Gentilli durante o debate sobre o metrô de Higienópolis — ele até correu o risco de perder um programa de entrevistas solo na TV – pode ter uma idéia clara do que estou dizendo. Corretamente, a frase de Gentilli, distribuída pelo twitter, mereceu um repúdio amplo e universal.

A reação diferenciada é um reflexo de uma visão diferenciada dessa questão. A crueldade de Bolsonaro contra os gays é exibida impunimente, à vista de todos. É um erro.

O preconceito não é mais ou menos grave pelo caráter de uma vítima em particular mas pelo prejuizo que produz em toda a socieade. Cada ser humano fica diminuido em sua dignidade quando outro ser humano é rebaixado por um tratamento indecente. A incompreensão dessa realidade produz omissões e até gestos de pura covardia.

Com frequencia, os preconceitos se misturam, se somam e se alimentam mutuamente. Isso porque eles se baseiam numa idéia única de hierarquia social, de superioridade natural de determinadas pessoas sobre outras. A sobrevivencia dos preconceitos exige que essa desigualdade seja reafirmada cotidianamente.

O preconceito é uma espécie de vigilia contra a igualdade, contra o direito à diferença, à individualidade. Sua origem é nebulosa, pois envolve palavras ouvidas na infancia, obras de autores de outras épocas e outros elementos. Sua finalidade política é a afirmar a superioridade — seja de um país sobre outro, uma cultura sobre outra, de uma classe social sobre outra.

Se você reparar, a maioria das pessoas que condenam homossexuais também deixam escapar ataques contra negros, contra judeus e até contra mulheres, ou, como hoje é frequente, contra as “loiras,” que é uma forma enrustida de ataque ao universo feminino. O fundo desse movimento é autoritário, violento e, como demonstra o depoimento de Bolsonaro, envolve uma visão de mundo e seu ideal de vida predileto é uma ditadura. Na entrevista a ÉPOCA, o capitão-deputado diz que “é uma mentira que o regime militar foi uma ditadura.”

No apogeu da colonização da África, o Rei Leopoldo, da Bélgica, que considerava-se um dos defensores da civilização ocidental, achava-se no direito de cortar mãos, braços e executar negros do Congo que não lhe entregavam carregamentos prometidos de diamante.

Hitler perseguia judeus — e também homossexuais, ciganos e militantes comunistas que, muitas vezes, designava como “bolcheviques judeus.”

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