terça-feira, 30 de novembro de 2010

Rio de sangue e um mar de erros

Reproduzo artigo de Gerardo Xavier Santiago, advogado, postado no Psicoblog

Mais uma vez mais a cidade do Rio de Janeiro sofre um surto de violência. Para a maioria, aparentemente a causa disso é somente a atuação de grupos criminosos e a solução é incrementar a repressão. As ferramentas adequadas são os “caveirões” e os tanques de guerra da Marinha. E para garantir o sucesso da empreitada repressiva é preciso endurecer a legislação criminal, reduzir a maioridade penal e tornar o regime prisional ainda mais severo. Será mesmo? Ousamos dizer que não, que a maioria está errada e que o preço desse erro é terrível e se paga em sangue.

Está errada a ideia de que a questão da criminalidade pode ser enfrentada como uma guerra no sentido literal da palavra, ou seja, em termos militares. Ao contrário do enfrentamento entre duas ou mais forças armadas, no qual o objetivo é a eliminação ou neutralização física do inimigo, a criminalidade é um fenômeno social, existente em maior ou menor grau em todas as sociedades, e como tal não é passível de eliminação ou neutralização pela ação de forças militares. Não é uma questão de serem tais forças bem equipadas e comandadas, mas sim de que nenhuma ação militar pode resolver o problema, assim como nenhuma ação militar resolverá o problema do aquecimento global ou a crise econômica, por exemplo. Simplesmente não é a abordagem correta.

O que fazer então? Certamente que o domínio territorial de comunidades carentes por bandos armados não é aceitável, mas a primeira preocupação deve ser sempre a de preservar a vida humana, o que não parece ser o caso no presente enfrentamento, que já produziu trinta e cinco mortos até o momento em que estas linhas são escritas. Como sempre nessas ocasiões, a polícia diz que todos eram bandidos, a mídia aceita a versão sem questionar e a opinião pública aplaude, numa catarse de ódio e através de um ritual de linchamento virtual que ameaçam muito mais os fundamentos do Estado democrático de direito do que a ação do brancaleônico “exército” de jovens negros descamisados empreendendo a sua patética e atabalhoada “longa marcha” entre a Vila Cruzeiro e o Complexo do Alemão.

O que está na origem de toda essa tragédia é o erro estratégico que é a denominada “guerra às drogas”. Trata-se de uma política criminal falida em nível global, que consiste em tentar eliminar um fato social e cultural, que é o uso de certas substâncias, através da lei penal, criminalizando a produção, distribuição e consumo delas.

Após décadas de operações militares como essa na Penha e no Alemão, as drogas continuam aí e vão continuar pelo horizonte temporal visível. Hoje elas são mais acessíveis e mais baratas do que no início da “guerra” contra a sua existência. O número de mortos gerados pela proibição das drogas é muito superior ao número de mortos pelo abuso de drogas. No México, que é o Complexo do Alemão dos EUA, quase trinta mil pessoas morreram desde 2006, quando o governo local fez a opção militar para enfrentar os cartéis de traficantes. É isso que queremos ver acontecer aqui no Brasil?

A única solução estrutural para a crise da segurança pública é mudar a política criminal. Colocar um ponto final a essa insanidade que é a “guerra às drogas”. Legalizar imediatamente a maconha, que é de longe a substância proibida mais usada, e mudar o foco em relação às outras drogas, trocando a ótica policial pela ótica da saúde pública. Parar de gastar o dinheiro dos contribuintes em imensos aparatos repressivos corrompidos e ineficazes, e direcionar esses recursos para campanhas educativas, clínicas e investimento social nas comunidades carentes hoje dominadas por criminosos.

A legalização seria o verdadeiro golpe mortal aplicado no narcotráfico, pela simples razão de que o privaria de sua inesgotável fonte de recursos financeiros, que vem a ser a receita com a venda de drogas. Sem esse fluxo de caixa não existiria para os criminosos a possibilidade de manter a sua onerosa estrutura paramilitar.

Responsabilizar os usuários de drogas pelos atos dos traficantes é ridículo, fazendo um paralelo histórico isto equivale a responsabilizar os cidadãos de Chicago que não cumpriram a absurda proibição de tomar uma cerveja pelas atrocidades de Al Capone. Essa abordagem moralista que mais uma vez é reproduzida na mídia, sem que se dê espaço ao contraditório, merece o mais firme repúdio. No mundo real, a verdadeira opção é pelo fim da “guerra às drogas” ou pela barbárie. Quanto mais burra a unanimidade e mais unânime a burrice, mais importante fazer o contraponto.

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