terça-feira, 14 de junho de 2011

As armas das tropas da elite não são só as de fogo

Por Sérgio Domingues, no blog Mídia Vigiada, Setembro de 2007

Os realizadores de “Tropa de elite” negam, mas fizeram um filme conservador. E o mais grave é que a produção chegou a um público mais amplo do que o normal. Queiram ou não, acabaram fortalecendo as tropas da elite com algo mais eficiente do que balas de chumbo: os valores conservadores.

O filme de José Padilha tem tudo para entrar para a história por dois motivos principais. O primeiro deles é que antes de ser lançado, “Tropa de elite” já estava na boca do povo. E não é exagerado utilizar a expressão “antes de ser lançado” já que uma cópia do filme foi desviada do estúdio de gravação muito antes de ir para as salas de cinema. Daí, para cair “na boca do povo” foi um pulo. Camelôs em quase todas as capitais do país gritavam seu nome nas esquinas. Assim, o filme foi parar literalmente “nas mãos do povo”. As cópias piratas oferecidas pelos vendedores ambulantes são mais baratas do que o aluguel em locadoras. Chegaram a milhões de famílias que têm aparelho de DVD e jamais iriam ver o filme nos cinemas. O diretor, os produtores e demais envolvidos no projeto ficaram revoltados com razão. Mas, a tecnologia que facilita a vida deles em muitos aspectos, também torna uma brincadeira de criança espalhar cópias não autorizadas em grande escala. Além da tecnologia, a desigualdade social é outro elemento que joga contra. A “indústria da pirataria” dificilmente deixará de funcionar enquanto direitos autorais forem confundidos com a propriedade intelectual das grandes empresas de cinema e TV. Mas, certamente, ela prospera muito mais em sociedades desiguais em que a grande maioria não tem dinheiro para assistir a um filme no cinema ou pagar uma assinatura de TV.
E este é bem o caso brasileiro. São milhões de aparelhos de DVD, vendidos a preços baixos, em muitas parcelas. E apenas 2 mil salas de cinema, com ingressos caros e concentradas nas regiões sudeste e sul do país. Para azar dos realizadores de “Tropa de Elite” tudo é muito contraditório. A tecnologia digital facilitou a vida dos piratas. Fez o filme um sucesso de público. Fala-se em 400 mil discos piratas vendidos. Uma bilheteria que não está ao alcance dos produtores do filme. Mas para a sorte da elite, essas facilidades tecnológicas estão sendo usadas para espalhar valores conservadores. Ou alguém já viu filmes de Eisenstein, Ken Loach, Solanas ou documentários populares e sindicais em barracas de rua? Claro que não. Os campeões de venda são os filmes típicos de Hollywood, com seus valores conformistas e conservadores e suas lições de moral. Seu culto ao individualismo, aos preconceitos e à violência como solução dos problemas sociais. Para a sorte da elite, o filme de Padilha não está longe disso, embora seus realizadores neguem isso. E apesar do excelente trabalho que o diretor fez em seu “Ônibus 174”.

Um debate que está pegando fogo é sobre o caráter fascista do filme ou não. Alguns jornalistas e muitos militantes sociais levantaram argumentos demonstrando o conservadorismo da produção. Padilha tem negado isso em debates e entrevistas. Wagner Moura escreveu um bom artigo no jornal “O Globo” contra essa leitura. Os argumentos de ambos fazem algum sentido. É uma denúncia da corrupção na PM, dizem eles. É a exibição crua da violência com que atua o Bope (Batalhão de Operações Especiais) nas comunidades pobres, afirmam. É a necessidade de colocar tudo isso em debate, alegam. Tudo bem. Mas, muito do que afirmam não fica claro no filme. São coisas que só podem ser deduzidas com muita boa vontade e de um certo ângulo. Ou que só poderiam ser esclarecidas levando-se em conta várias opiniões contrárias e favoráveis. Não é o que acontece com as milhões de pessoas que irão aos cinemas e as dezenas de milhões que já estão vendo o filme em suas casas. Pouquíssimas delas poderão participar de um debate em que seja denunciada a atuação racista e de perseguição aos pobres por parte do Bope.

A verdade é que o formato e momentos decisivos do filme dificultam a leitura que seus produtores pretendem. Do ponto de vista, do ritmo, narração, atuação dos atores, roteiro, “Tropa de Elite” arrasa. Mas, tudo indica que foi exatamente por isso que não foi indicado para concorrer como melhor filme estrangeiro ao Oscar. Dizem os especialistas que a produção é americanizada demais para justificar sua presença como filme estrangeiro.

Então, de pouco valem os argumentos de Padilha e Moura diante da vida própria que o filme ganhou. Vida própria ao chegar a milhões de lares. E vida própria ao permitir que a violência do Bope fosse vista como necessidade inegável diante da violência urbana. E é esta a leitura que se pode deduzir de várias manifestações que podem ser ouvidas nas ruas e nas poucas salas de cinema em que foi exibido. São formas de ver o filme profundamente influenciadas pelos valores conservadores reafirmados todos os dias nos jornais, revistas, programas de TV, novelas, filmes, etc.

Um argumento de Padilha é que se trata de um filme de ficção e não de um documentário. Pode ser. O problema é que na mídia atual, notícias têm recebido cada vez mais tratamento ficcional. São animações digitais, reconstituições cinematográficas, entrevistas regadas a lágrimas, jornalistas de TV que interpretam notícias fazendo caras e bocas. Por outro lado, são décadas de produções de grandes estúdios reafirmando oposições como índios selvagens e brancos civilizados, bandidos negros e mocinhos brancos, negras feias e submissas e loiras burras e gostosas, machões sadios e homossexuais degenerados. No caso do filme de Padilha, a oposição ficou entre a polícia corrupta e a polícia heróica na luta contra o crime. O problema é que a polícia heróica é também criminosa ao agir como um esquadrão da morte oficial.

O fato é que valores estão em jogo. De um lado, os conservadores, que sustentam a desigualdade social, a criminalização da pobreza, racismo, machismo, exploração do trabalho, destruição ambiental. De outro, os que procuram combater tudo isso ao defender a justiça social, a igualdade, as liberdades, a diversidade humana, o fim da exploração e a defesa da vida no planeta. E desse ponto de vista, “Tropa de Elite” reforça os primeiros, mesmo não sendo fascista.

É só tomarmos o exemplo de recente reportagem da revista “Veja” sobre Che Guevara. Trata-se de um ataque a um dos poucos símbolos da esquerda mundial e da resistência popular em geral. A publicação levanta aspectos negativos e falhas políticas de Guevara que realmente existiram. Mas, a revista sabe muito bem o que quer ao atacá-lo. Quer desmoralizar tudo, todas e todos que ousam desafiar a ordem dominante. Não há nem muito espaço para a polêmica. Este é o papel da “Veja”. Defender como um pitbull feroz os interesses dos ricos e poderosos.

A obra de Padilha está longe de desempenhar esse papel. Mas, com certeza será bem recebida pelos que compartilham a visão de “Veja”. Com o agravante de que o filme está chegando a um público muito mais amplo do que se esperava. Nessa situação, o que parece ser apenas o dedo no gatilho de um 38 pode disparar poderosos mísseis. “Tropa de Elite” fez isso em dois sentidos. O primeiro, ao tornar heróica a atuação do Bope e, o segundo, ao permitir que tal visão se espalhasse pela sociedade. Seus realizadores dizem que não era sua intenção. Mas, de boas intenções e cadáveres as favelas estão cheias.

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